05 março 2007

incompatibilidades

Finalmente o submarino da Anatomia voltou a terra firme!!! Foram dias passados a contar artérias e a recitar colaterais, numa espécie de coma anatómico auto-induzido. Sábado não foi Sábado, foi dia do tronco e à noite do membro superior, Domingo dia de atrofios, revisões, aprendizagens forçadas… Hoje é dia de anestesia pós teste. E, como sempre, previsões só na pauta.

Mas o dia não foi só a ansiedade matinal, a nébula, o teste e o entorpecimento. Houve ainda que fazer o trabalho de Introdução à Medicina, pensar no tema para o de Preventiva e ainda me falta organizar as papeladas com nomes de artérias espalhadas um pouco por toda a sala e limpar a casa, porque amanhã é novamente dia de labuta – tenho uma apresentação na quinta-feira.

O que me leva ao tema principal deste post. Não sei se é geral ou exclusivo desta faculdade, mas pelo menos por aqui fala-se muito da importância de um médico ser completo a todos os níveis. Em concreto, fala-se da importância de ter uma grande cultura geral. Ora eu concordo com isso. Não por elitismo ou afirmação da classe, mas porque acho que só sabendo e conhecendo muito podemos compreender a realidade humana, enfrentá-la; ver o homem como um todo e não como um potencial candidato à cirurgia ou tratamento x ou y. É preciso compreender as pessoas, o que está por detrás daquele fígado doente que a levou à consulta, saber as motivações, desesperos, medo. Em suma, no meu ponto de vista, o médico deve ser um grande ser humano, mas também um grande humanista.

O problema é que para isso é preciso tempo. Que não nos é dado. Falo por mim. Os filmes são vistos à socapa, as notícias chegam na versão resumida, jornais e revistas são lidos no trono (aka sanita), o livro que estava a ler, bem, com tanta Anatomia já perdi o fio à meada… Aprende-se também muito na interacção social, na vida do dia a dia, nas conversas, a ouvir as opiniões dos outros. Mas até aqui o polvo que é a Medicina lança o seu tentáculo. As conversas com os colegas, salvo raras e honrosas excepções, giram inevitavelmente em torno das cadeiras, materiais disponíveis, queixas mais ou menos gerais. Cada pessoa é “do meu grupo desta ou daquela cadeira” e não “aquela gaja que gosta muito desta ou daquela música, que leu tudo daquele autor, que me falou das tradições dos índios” ou o que quer que seja.

Hoje tive teste de Anatomia, escassas semanas depois da época de exames. Faltam cerca de 3 meses para a próxima época, durante os quais, além de estudar para os exames, há que preparar poster para tudo quanto é cadeira, fazer apresentações quase semanais, escrever diários. E, honestamente, a maior parte de tudo isto é para “encher”. São coisas que não ficam porque não saem nos exames, que a este nível não são particularmente estimulantes por serem tão generalistas, que não contribuem para a nossa cultura médica nem humana e cuja valorização pessoal se limita à nota que delas advier (se é que as vamos saber, já que acabam por não contar quase nada para o todo da cadeira).

Se não fosse tudo isto, o que é que eu faria? Aproveitaria para estar com amigos, pôr as leituras em dia, chatear o meu médico para passar mais umas tardes no centro de saúde, ia para um ginásio, fazia voluntariado, tirava um curso avançado de suporte de vida e tentava melhorar o meu Inglês e o meu Francês. Assim sendo, há que poupar nas viagens porque os livros são caros, não tenho hora para ir ao ginásio, tempo para formações complementares é mentira, os poucos programas bons que dão na televisão em canal aberto são gravados e vistos fora de horas e só não ando alheia da realidade nacional e mundial porque programo o jantar para a hora das notícias e o rádio do carro para a Antena 1.

E assim se formam médicos que acabam o curso com a mesma mentalidade que tinham aos 18 anos, a mesma experiência de vida, a mesma indefinição de personalidades e ideias.

(Ok, esta última parte é um exagero, mas dá para perceber a ideia, certo?)

2 feedbacks:

Lef disse...

Dá...
E é por eu "cagar" um bocado para algumas responsabilidades e escrever num blog, ler o público, preparar um blog para alguém que precisa de mostrar visibilidade e simplesmente, pastar um bocado em frente à TV a ver quem são os novos talentos, que vou muito provavelmente ter uma note miserável a Anatomia...
A verddae é que é preciso ser um médico completo, mas sem as bases científicas também não vamos lá. Se gostaria de aprender de forma diferente sim isso sim, aprendo mais nas apresentações que faço do que nos dias em que estudo para o exame.
E se concordo quase a 100% com o que dizes, a verdade é que mesmo com mais tempo durante o curso provavelmente as coisas seriam muito semelhantes ao que são.
Provavelmente a solução seria apostar em dar pontos a tudo o que fosse "trabalho" extracurricular e isso não acontece. A vida do estudante e do médico é feita muito á volta da mesma coisa a medicina e é por isso que muitas vezes o que lhes está à volta não diz nada...
Só um pequeno exemplo, em Espanha é comum um médico entrar às 8 da manhna e ininterruptamente ficar até às 15 a trabalhar hora em q sai e vai almoçar e fazer outras coisas na vida. Pergunto-me como pode por exemplo um clinico geral informar-se e actualizar-se se entra ás 8 para sair à 13/12 para depois entrar outra vez às 14 e sair às 20, como acontece muitas vezes...
A dedicação acho óptimo, mas ser muito dedicado sem saber, não cumpre o objectivo total de ser médico, pois não?
E já agora, bom dia!
:)

M disse...

Madame Barriguita:

É claro que as bases científicas são essenciais!!! Se para ser médico ou qualquer outra profissão bastasse a Escola da vida, todos eramos tudo sem conhecimento absoluto de nada. E logo Anatomia, a base das bases!
Aquilo de que eu falo é de uma certa... flexisegurança! Um simplex de trabalhos, pronto! Acho que há sempre tempo para tudo e quando é pra estudar, há que estudar a sério.
Claro, há sempre os momentos de "preguicite aguda", mas bom... toca a todos. E ainda temos a oral no fim para aferir!